quarta-feira, 11 de novembro de 2015

A SALA DE AULA: CURRÍCULO FORMAL E CURRÍCULO REAL

THE CLASSROOM: FORMAL CURRICULUM AND CURRICULUM REAL

José Ribamar Tôrres Rodrigues
Doutor em Educação pela USP
Mestre em Educação pela PUC/SP
Estágio em Formação de Professores no IUFM de DOUAI/ França
Estágio em formação de Professores em CUBA
Ex-Membro do Conselho Estadual de Educação/PI
Coordenador do Fórum Estadual de Educação
Membro do Banco de Avaliadores do MEC/INEP.

José Ribamar Rodrigues Tôrres
PhD in Education from USP
Master in Education from PUC / SP
Internship in Teacher Training in the IUFM of DOUAI / France
Stage for Teacher training in Cuba
Former member of the State Board of Education / PI
Coordinator of the State Education Forum
Member of Appraisers Bank MEC / INEP.


  
Este texto relata a execução do processo curricular de escolas da área rural do Estado do Piauí (Nordeste do Brasil) por professores não qualificados, chamados professores leigos por não terem habilitação legal para atuar na educação infantil e primeiros quatro anos do ensino fundamental. O desenvolvimento curricular, embora com procedimentos prescritos pela Secretaria de Educação, através de livros e treinamentos constantes, na prática, prevalecem as atividades do domínio a cultura local e regional. Isso acontece porque os professores, via de regra, não dominam os conteúdos exigidos pelo currículo oficial. Por outro lado, a aprendizagem dos alunos está desconectada das exigências da competição social e, neste aspecto, a escola reforça os processos de exclusão social.

This paper reports the implementation of the curricular process of schools in the rural area of the State of Piauí (Northeast of Brazil) by unqualified teachers, called lay teachers because they have legal authorization to work in early childhood education and the first four years of elementary school. Curriculum development, albeit with procedures prescribed by the Education Department, through books and constant training in practice prevails the activities of domain local and regional culture. This is because the teachers, as a rule, do not master the content required by the official curriculum. On the other hand, student learning is disconnected from the requirements of social competition and in this respect, the school strengthens the processes of social exclusion.

Cet article présente la mise en œuvre du processus pédagogique des établissements scolaires dans la zone rurale de l'État de Piauí (nord-est du Brésil) par des enseignants non qualifiés, appelés enseignants laïcs parce qu'ils ont l'autorisation légale de travailler dans l'éducation de la petite enfance et les quatre premières années de l'école élémentaire. Le développement du curriculum, mais avec des procédures prescrites par le Département de l'éducation, à travers les livres et la formation constante dans la pratique prévaut les activités du domaine de la culture locale et régionale. Ceci est parce que les enseignants, en règle générale, ne maîtrisent pas le contenu requis par le programme officiel. D'autre part, l'apprentissage des élèves est déconnectée des exigences de la concurrence sociale et à cet égard, l'école renforce les processus d'exclusion sociale.

Este trabajo presenta la implementación del proceso curricular de las escuelas de la zona rural del Estado de Piauí (nordeste de Brasil) por maestros no calificados, llamados maestros laicos porque no tienen autorización legal para trabajar en la educación de la primera infancia y los primeros cuatro años de la escuela primaria. Desarrollo curricular, aunque con procedimientos establecidos por el Departamento de Educación, a través de los libros y la capacitación constante en la práctica prevalece la actividad de dominio cultura local y regional. Esto se debe a los maestros, por regla general, no dominan el contenido requerido por el currículo oficial. Por otra parte, el aprendizaje del estudiante se desconecta de los requisitos de la competencia social y en este sentido, la escuela refuerza los procesos de exclusión social.

Questo articolo riporta l'attuazione del processo curricolare delle scuole nella zona rurale dello Stato di Piauí (nord-est del Brasile) da insegnanti non qualificati, chiamati insegnanti laici perché non hanno l'autorizzazione legale per lavorare nell'educazione della prima infanzia e nei primi quattro anni di scuola elementare. Lo sviluppo del curriculum, anche se con modalità previste dal Ministero dell'Istruzione, attraverso i libri e la formazione continua, in pratica prevale l'attività di dominio della cultura locale e regionale. Questo perché gli insegnanti, di regola, non padroneggiare i contenuti richiesti dal programma ufficiale. D'altra parte, l'apprendimento studente viene scollegato dalle esigenze di competizione sociale e in questo senso, la scuola rafforza i processi di esclusione sociale.

Dieses Papier berichtet über die Umsetzung der curricularen Prozess der Schulen im ländlichen Gebiet des Staates Piauí (Nordosten Brasiliens) durch unqualifizierte Lehrer, genannt Laienlehrer, weil sie rechtliche Ermächtigung nach frühkindlichen Bildung und den ersten vier Jahren der Grundschule zu arbeiten. Lehrplanentwicklung, wenn auch mit Verfahren, die von der Bildungsabteilung vorgeschrieben, durch Bücher und ständige Weiterbildung in der Praxis herrscht die Aktivitäten der Domäne lokale und regionale Kultur. Das ist, weil die Lehrer in der Regel, nicht die von der offiziellen Lehrpläne erforderlichen Inhalt zu meistern. Auf der anderen Seite, ist das Lernen der Schüler von den Anforderungen der sozialen Wettbewerb getrennt und in diesem Zusammenhang stärkt die Schule die Prozesse der sozialen Ausgrenzung.

Эта статья сообщает реализацию учебных программ процесса школ в сельской местности штата Пиауи (северо-восток Бразилии) по неквалифицированных преподавателей, называемых светских учителей, потому что они имеют юридическую разрешение на работу в дошкольное образование и первые четыре года начальной школы. Разработка учебных программ, хотя и с процедурами, предусмотренными Департаментом образования, в виде книг и постоянного обучения на практике преобладает деятельность домена местном и региональном культуры. Это потому, что учителя, как правило, не освоить содержание, требуемую официальной учебной программы. С другой стороны, обучение студентов отключен от требований социальной конкуренции и в этом отношении, школа усиливает процессы социальной изоляции.
Eta stat'ya soobshchayet realizatsiyu uchebnykh programm protsessa shkol v sel'skoy mestnosti shtata Piaui (severo-vostok Brazilii ) po nekvalifitsirovannykh prepodavateley , nazyvayemykh svetskikh uchiteley , potomu chto oni imeyut yuridicheskuyu razresheniye na rabotu v doshkol'noye obrazovaniye i pervyye chetyre goda nachal'noy shkoly . Razrabotka uchebnykh programm , khotya i s protsedurami, predusmotrennymi Departamentom obrazovaniya , v vide knig i postoyannogo obucheniya na praktike preobladayet deyatel'nost' domena mestnom i regional'nom kul'tury . Eto potomu, chto uchitelya , kak pravilo , ne osvoit' soderzhaniye , trebuyemuyu ofitsial'noy uchebnoy programmy. S drugoy storony, obucheniye studentov otklyuchen ot trebovaniy sotsial'noy konkurentsii i v etom otnoshenii , shkola usilivayet protsessy sotsial'noy izolyatsii .

Os alunos chegam às escolas aos grupos, a pé ou de bicicleta, pelas veredas sinuosas por entre as matas ralas da caatinga ou de palmeiras nativas de babaçu ou carnaúba, geralmente se aglomerando no pátio escolar ou sob a sombra de árvores, aguardando a professora chegar para abrir a escola. Eles não só assumem tarefas de ensino em sala de aula como tambémajudam o professor nas funções administrativas, realizando tarefas como apagar o quadro de giz, varrer a escola, avisar a hora do recreio e da merenda e ajudar distribuí-la. Nas escolas onde há merendeiras e zeladoras, estas trazem os filhos para ajudá-las nas tarefas (uma espécie de estágio) e assim como o professor leigo, reproduz-se a partir de alunos que são introduzidos para exercerem atividades pedagógicas em sala de aula, assim também, pelo mesmo processo, as demais funções administrativas. Isto constitui um amplo espaço de apropriaçãode saberes e da cultura escolar que vão construir uma imagem de competência junto a dirigentes e comunidades.

Os professores, igualmente, chegam à escola, pelos mesmos meios de transporte dos alunos. Alguns abrem o prédio, chamam os alunos e organizam as carteiras e, desde a primeira aula, estabelecem a posição espacial dos alunos conforme a série e estatura, embora dentro destes grupos os alunos naturalmente se organizem em função do gênero. Cada série tem um limite espacial da sala de aula: à frente, aos lados, atrás e centro, se a classe é multisseriada. Se não, o comum são os menores à frente e os maiores atrás, meninos de um lado da sala e meninas de outro. Este tipo de organização parece ser um reflexo das relações tradicionais fora da escola em que, nas reuniões, comemorações cívicas, religiosas, folclóricas ou na organização da produção, os homens e meninos ficam de um lado e as mulheres e as meninas ficam de outro. O professor ou a professora, após organizar a sala, senta-se à mesa e enquanto aguarda, por alguns minutos, alunos que aos poucos vão chegando, organiza o material da aula ou rever as anotações do seu caderno para a aula daquele dia.

Enquanto isso vai fazendo a chamada pelo nome ou pelo número, intercalando comentários sobre a execução de tarefas escolares ou se estudaram o assunto marcado para o dia anterior; recebendo recados de justificativas, de ausências, geralmente relacionadas às tarefas domésticas, como carregar água, ajudar a mãe com os irmãos menores, ajudar o pai na roça, doença ou viagem. A chamada, mais que um controle de presenças, constitui-se num ritual interativo da história cotidiana da escola, alunos e famílias.  Estas justificativas fazem o professor decidir por não registrar faltas porque o registro delas provoca insatisfação dos pais que, tendo comunicado o motivo da ausência do aluno,entendem  isto como desconsideração, podendo até solicitar a transferência do filho daquela escola. A saída de alunos da escola não só ameaça a imagem do professor junto à comunidade e à secretaria de educação como a continuidade de seu trabalho e mesmo a perda do emprego.

Caixa de texto: Fig. 6.13
Após a chamada, conforme o assunto do dia indicado na seqüência do livro didático corrige a tarefa do dia anterior de acordo com o gabarito do livro do professor ou copia tarefa no quadro de giz, sempre iniciando pelo cabeçalho (nome da escola, nome do lugar, data, nome do aluno e série). Os exercícios copiados de um caderno onde ele já traz copiado os assuntos do dia e exercícios que ele já repete há vários anos, inclusive de sua época de estudante, ou copiados dos livros. O mais comum é tomar a letra 4, como eles chamam tomar a lição: solicita aos alunos a abertura do livro texto em página determinada e vai a cada carteira onde o aluno lê o texto em voz alta e o professor vai corrigindo os errosenquanto os demais acompanham.
Caixa de texto: Fig. 6.14

 










Unidade Escolar Hoche Ferrer. Coivaras-Pi.                     
 Unidade Escolar Mariano Carvalho. Teresina-Pi

            Após a leitura de todos, o professor realiza os exercícios do livro didático, oralmente, dirigindo perguntas a cada aluno ou os copia no quadro de giz e ao final dá as respostas pelo gabarito do livro do professor. O mesmo ritual é repetido com as demais disciplinas e com as várias séries, no caso de classes multisseriadas.

O tempo de aula é dividido, a critério do professor, entre as várias disciplinas sem maior controle da Secretaria de Educação. Há professores que ministram, diariamente, em todo um turno uma só disciplina; outros dividem o turno de aula para duas ou para todas as disciplinas, ou seja, língua portuguesa, matemática, ciências, história, geografia, artes               (desenho, pintura, artesanato, canto e outras atividades que eles concebem como disciplina, como rezas, comemorações de datas religiosas, folclóricas e cívicas. Ao final da aula, os alunos saem sem qualquer organização. Em algumas escolas, os professores organizam os alunos em fila, cantam o Hino Nacional, o Hino do Piauí ou o Hino do Município e como na chegada, vão sumindo nas veredas por entre a caatinga rala ou palmeirais de babaçu ou carnaúba. A propósito disto, os depoimentos seguintes de uma coordenadora e professores são ilustrativos:

                    "Quando cheguei aqui, eles só sabiam português. Sabia não, vírgula, ela passava por cima da aula e o resto nada. Hoje, não, eles estão melhor; agora, na zona rural, eles não dão conteúdo total, eles não sabem dar. Nenhuma... o que eles não sabem, eles passam por cima". (Profa. Ana Neri., coordenadora).

                    "As dificuldades são grande, né? (...) Não deixa da gente ter dificuldade de conteúdo... primeiramente, matemática... é uma coisa muito complicada... principalmente aquele aluno que está na 4a série... aquilo ali fica difícil... como cálculo, expressão numérica... Os aluno acha pesado... de modo geral, porque tem deles que são curioso... às vezes mais do que o professor, mas que matemática eu acho difícil. (Justino Almeida, Canto Grande, Altos).

                    "A maior dificuldade é assim... nessa parte... vamos dizer... quando a gente não toma bem hábito num conteúdo. Vamos dizer... nós num tamo entendendo esse conteúdo. Aí, a gente quer transmitir aquele conteúdo... passar pro aluno... se a gente encontrar alguma dificuldade, esse problema a gente encontra e também não é tanto porque a gente vai e descobre... que isso aí eu sou até... eu descubro mesmo... eu gosto de criar, meu..." (Luis Costa, Uruçus, Altos).

                     "Eu encontro mais dificuldade, pra ser sincera, é em matemática... assunto de cálculo... eu não gosto de jeito nenhum. Acho que é minha obrigação entender, fazer (...) Eu estudo releio e quando não entendo, eu pergunto alguma pessoa, mas não deixo de dar não". (Conceição Santos, Mercês, Altos).   

                     "A dificuldade é só que o estudo é pouco. Às vezes não compreendo as coisas do livro. Não procuro ninguém. Estudo até compreender. Não vou dar pro aluno sem saber porque ele pode fazer uma pergunta e eu não responder". (Zuleide, Bom Princípio, Beneditinos).    

Quando não há tarefa do dia anterior para corrigir, ele sempre inicia a aula com leitura do livro texto, onde cada aluno faz um trecho da leitura e o exercício de interpretação que está no livro. Em classes multisseriadas, o professor pratica o ensino mútuo e simultâneo 5, passa tarefa do livro para uma série enquanto está atendendo outra. A partir do momento que uma série termina o exercício, o professor os vai corrigindo pelo seu livro que já vem respondido.

É nesse momento que o professor dá algumas explicações sobre o assunto, restrito acada resposta.  Estas implicações metodológicas na prática do professor leigo piauiense são históricas, como está registrado em "A Instrução Pública no Piauí - 1922":

         "Três anos após a independência foram criadas três escolas oficiais: em Oeiras, Parnaíba e Campo Maior com a utilização do método do ensino mútuo. Incalculável a confusão produzida no curto espíritodos mestre-escola ao lhes ser imposto o novo processo de ensino pelo governo da província. De todos os pontos onde há escolas, surgem reclamações. Falhava, assim, o ensino oficial mal ministrado" (p. 48).

Já em 1933, o Regulamento Geral do Ensino, recomenda que

         "No ensino primário, dever-se-ão adotar as conquistas positivas da escola nova; lições variadas, concisas, vividas ao alcance da mentalidade infantil deixando sempre ao educador a iniciativa de adquirir os conhecimentos por si, reservado ao professor o papel de guia esclarecido e metódico. O método geral do ensino será o intuitivo, cabendo ao professor não permitir que o aluno decore mecanicamente as lições, mas procure ativamente a compreensão e o sentimento dos fatos, substituída a memorização fatigante pelo raciocínio produtivo" (p.27-28).

Por outro lado, o professor leigo garante sua posição de utilidade, através dos saberes específicos que gera, legitimandosua prática pedagógica como contra-força  para a conservação do seu espaço como profissional. Pela sua própria condição sociocultural desfavorável, vale-se dos saberes da experiência, por ele assimilados ou construídos, sejam dos poucos anos de escolaridade, sejam dos treinamentos, da troca de experiênciacom os colegas, dos livros didáticos, de revistas educacionais que circulam na escola, trazendo modelos de experiências  e atividade para serem realizadas em sala de aula de 1a à 4a  séries ou da TV escola ou de vídeos. Ele se vê diante do conflito entre os saberes curriculares que pouco domina e os saberes da experiência que, socialmente desvalorizados, o descaracteriza como profissional. Uma das professoras dá o seguinte depoimento:

"O que eu aplico na sala de aula, eu aprendi nos treinamentos, com as       idéias dos colegas, às vezes, de vez em quando se dá uma olhadinha no livro e vê, mais ou menos,se dar aquilo ali pra realizar com os alunos da gente...é assim". (Maria José, São Pedro, Teresina).
Jean Michel Chapoulie, (1979), diz que, do ponto de vista da administração, a definição de competência profissional dos professores, implícita nos concursos de seleção, define-se por uma competência cultural geral, isto é, o grau de apropriação de conhecimentos gerais, semelhante àquela contidano processo de aquisição do diploma de licenciatura, e uma competência  específica  do docente,  chamada   pela    administração    como   pedagógica   ou   prática [1].
Relacionando isto com a questão do professor leigorural, a administração municipal, embora reconhecendo o valor da competência prática ou pedagógica do professor leigo, só a legitima pelo processo de domínio dos conteúdos científicos, confirmados pela titulação acadêmica.  Esta representação de competência é incorporada pelo professor leigo e, por isso, talvez ele não se sinta professor de verdade, uma vez que não tem o instrumento de
oficialização de tal competência, qual seja o diploma. Isto monstra que a administração e professores leigos têm semelhantes representações de competência profissional, fazendo não só a distinção entre competência cultural (domínio dos conteúdos) e a competência prática (experiência), concebendo-as com distintos graus de valor. 

De modo geral, a prática do professor leigo apoia-se em três ordens de saberes: a base formal ou teórica, contida nos processos de formação e nas propostas curriculares; a base informal ou da experiência, contida na trajetória cotidiana social e da sala de aula e a base valorativa ético-ideológica, contida na cultura da sociedade e da classe social a qual pertence. Aliado a isso, podem-se perceber três níveis de desvalorização do professor leigo. Em primeiro lugar, ele deve socializar saberes científicos produzidos por outros grupos aos quais ele não pertence e de cujo processo de produção ele não participa; em segundo lugar, os saberes por ele produzidos ou retraduzidos ao longo de sua experiência não são legitimados pelos grupos produtores e guardiões de saberes (academia, técnicos e dirigentes educacionais); em terceiro lugar, não dispõe do diploma que legitima uma competência no âmbito de saberes formalizados e socialmente aceitos.

Desse modo, tanto para uns como para outros(administração e professores leigos),  a competência pedagógica é desvalorizada, uma vez que só a competência formal pode legitimar a esta e aos graus profissionais assumidos por eles na carreira docente.


Ensino simultâneo: Aaprendizagem totalizante

A classe multisseriada é uma espécie de aprendizagem total no sentido da possibilidade do aluno obter informações particulares dos conteúdos de sua série e genéricas em relação às demais séries, o que se poderia chamar de aprendizagem interativa totalizante.  A divisão do conteúdo curricular por série estabelece áreas de “segredos” a cujo acesso só é permitido àqueles que forem aprovados na série anterior. Este processo enclausura os saberes a serem assimilados como se estes fossem isolados dos demais de outras séries. Na realidade, estas “caixas pretas” do currículo em relação ao aluno pressupõem uma certa homogeneidade de desenvolvimento bio-psico-sociológico dele e ignora diferenças decorrentes das relações sociais, de uma sociedade de classes, onde, equivocadamente, se estabelece uma relação direta entre resultados de assimilação do saber e poder, isto é, em termos de educação escolar a origem de classe dos alunos é um dado suficiente para legitimar uma hierarquia entre os saberes como superior ou inferior, valorizados ou desvalorizados.

Certamente, as diferenças entre alunos, tanto entre classes sociais quanto no interior das mesmas, deve representar não uma hierarquização de saberes, mas formas de saberes que dão suporte e orientam suas ações cotidianas nas relações individuais e coletivas com o mundo. Embora tais saberes nem sempre sejamlegitimados socialmente, isto acaba por  ensejar a atribuição de menor ou maior poder aos saberes socialmente aceitos ou não. Em conseqüência, os saberes oficiais, contidos nos currículos estão constantemente em conflito com os saberes não legitimados, trazidos para a escola em função das diversas origens sociais de alunos, professores e dirigentes.

 







Caixa de texto: Fig. 6.16

 


Unidade Escolar Djalma Pereira. Mons. Gil-Pi
                                                                                               Unidade Escolar Felipão. Altos-Pi

Nesse sentido, a classe multisseriada da escola rural é concebida, formalmente, enquanto espaço escolar onde o professor leciona para duas ou mais séries em um mesmo espaço e tempo. No entanto, a concepção curricular ignora a multisseriação de saberes e a multisseriação bio-psico-sociológica que está presente em qualquer classe de qualquer grau ou modalidade de ensino e isto representa uma multiplicidade de histórias do modo de pensar, sentir e agir no mundo e com o mundo. A concepção de seriação escolar parece estar ligada a uma representação de grupos sociais hegemônicos, sobre a sociedade e suas relações, determinando, em todos os níveis, inclusive o escolar, processos de pensamento, sentimento e ação que garantem a continuidade e a hegemonia desses grupos.

Na escola rural, o professor leigo não só incorpora esta representação da multisseriação com o um desvio do processo escolar, como institucionaliza outros tipos de desvios originários de particularidades do cotidiano local. Exemplo disso é a prática comum em classes multisseriadas, o professor leigo estabelecer uma multisseriação não em função das séries oficialmente legitimadas, mas em função dos saberes que ele considera terem os alunos. Assim, na mesma sala de aula, há alunos de 1a série A (aqueles que estão se alfabetizando) e 1a série B (aqueles que já sabem um pouco, ler, escrever e contar ou chamam simplesmente1a série fraca e 1a série forte. Este processo embora sejam mais comuns na 1a série, também, é presente nas demais séries. É um tipo de organização do saber curricular, divergente do modelo oficial. A promoção, de uma para outra dessas sub-séries, fica a critério do professor, que faz um controle paralelo ao do diário de classe. O aluno, geralmente, é “promovido” se obtiver boas notas, podendo dar-se em questão de meses, semestre ou ano. Muitas vezes, o aluno fica o ano todo na 1a série A e no ano seguinte passa para a 1a série B. O que parece ser uma “promoção” de série, é, na verdade, uma repetição, mas no conceito familiar o aluno é tido como “promovido”. Esta situação parece estar relacionada à carência de educação infantil ou pré-escolar na maioria destas localidades rurais.

A classe multisseriada concebida por pesquisadores, dirigentes e professores como uma patologia do processo de ensino e aprendizagem, pode-se constituir numa ruptura da concepção de organização escolar, curricular e até de formação de professores.  Isto é, uma saída para que nestes processos seja enfatizada a função interativa da aprendizagem numa perspectiva de totalidade em que cada aluno perceba a articulação entre o particular e o universal e vice-versa. Para isso, reverte-se da maior importância a formação e atuação do professor não como transmissor de saberes, mas, como construtores de saberes juntamente com os alunos numa perspectiva local-universal-local. Isto é, a compreensão e ação no mundo e com o mundo não se dá sem essa relação dialética na qual os saberes locais se articulam com os saberes universais os quais, por sua vez, permitem a reelaboração de saberes locais ou particulares.

Em classes multisseriadas, na tentativa de manter alunos de uma série ocupados enquanto atende os de outra série, o professor solicita que façam exercícios que já foram feitos. Ao ser avisado pelos alunos, o professor muda para qualquer outro seguinte do livro. Uma delas dá o seguinte depoimento:

"A dificuldade é essa de ter muitos alunos seriados... nem todos são iguais. Quando a gente tem a turma de 1a série, tem esse problema, um sabe escrever, outro num sabe... No 2o ano, tem aquele que lê correto e tem aquele que não lê. Já tem aquele do 4o ano que lê, mas são pouco aluno. Enquanto eu tô fazendo o trabalho na 1a série, para aqueles que já copiam, aquele outro sempre fica andando. Aquele da 2a já fica fazendo outra coisa. Então depois desse livro facilitou mais porque a gente não tinha livro didático...eu já marco no livro a tarefa pra aquele outro aluno, enquanto copio para a 1a série. Aí, sempre eu faço atividades em casa. Copio em cima do assunto que eles copiaram do livro, pra eles responderem de acordo com o texto lido”. (Profa. Suzana, município de Demerval Lobão).

Na sala de aula, predominam as atividades de leitura e interpretação de texto, cópia, ditado de palavras, ditado mudo que consiste em mostrar um objeto ou desenho para o aluno escrever o nome deles. Observou-se que não há uma preocupação do professor nem com a seqüência de ensino, nem com a articulação entre os conteúdos estudados e destes com a realidade do aluno. Quando a classe é multisseriada, o professor utiliza três práticas pedagógicas.  Na primeira, ele marca, no livro, o assunto paraos alunos de 3a e 4a séries estudarem e responderem o exercício correspondente e só no final da aula ele corrige as respostas. Concentra o atendimento à 1a e 2a séries, utilizando o livro ou o quadro de giz. Na segunda, ele marca o assunto no livro para cada série e enquanto umas estudam ou fazem os exercícios, ele atende outras. Na terceira, ele explica o mesmo assunto para todas as séries e na tarefa estabelece uma gradação de dificuldade de acordo com a série.

Como exemplo, na aula de matemática sobre as quatro operações, o professor explica o mesmo assunto para todos e no exercício varia o nível de dificuldade. A 1a série escreve os números cardinais de 1 a 50 ou os números pares ou ímpares; a 2a série faz conta de somar e diminuirde duas parcelas de dois algarismos; a 3a série faz contas de somar e diminuir de três ou quatro parcelas e multiplicar com algarismos simples em forma de tabuada; a 4a série faz contas mais complexas e problemas de aplicação das quatro operações.

Um excerto retirado das observações de campo pode dar uma idéia mais clara:
"A Professora levanta-se, vai ao quadro, apaga-o e diz:
             2asérie... exercício de matemática.”
             Abre o seu caderno, segura-o com uma das mãos e vai copiando o exercício no quadro de giz:
“Exercício
1) Calcule e some
a) 28 + 16; b)35 + 27; c)74 + 19; d)36 + 25.”

Enquanto os alunos copiam, a professora saí até o pátio da escola e pergunta algo (...) para alguém lá em sua casa que fica em frente à escola. Volta à sala e pergunta:
“Profa - Terminaram?
Aluno - Tem noves fora na conta, tem? “

A professora vai até a carteira do aluno e fala baixinho (...) e diz: Tu tira sem somar! Vai a outra carteira... outra ...circulando enquanto os alunos efetuam os cálculos. Volta ao quadro de giz e copia o segundo quesito.
“2) Arme e efetue as adições
a) 25 + 48; b)47 + 15; c)42 + 38 d)54 + 37.”

Enquanto a professora copia no quadro e os alunos de 2a série copiam no caderno, os alunos de outras séries, sem tarefas, conversam entre si, (...) sobre o resultado das contas que a professora está copiando.
“3) Efetue as adições
a) 65 + 16;b) 47 + 27;  c) 48 + 13;  d) 36 + 34;  e) 75 + 7
4) Some
a) 25 + 11 + 36;b) 12 + 24 + 25;  c) 15 + 15 + 4;  d) 28 + 14 + 34;
e) 31 + 16 + 18;      f) 49 + 10 + 21.”

A professora confirma no seu caderno o resultado das operações. Vai ao quadro para copiar o último quesito.
“5) Resolva
a) um barco leva 45 meninos e 38 meninas. Quantas crianças estão no barco?”

Enquanto os alunos tentam resolver o exercício, a professora circula pela sala, tirando as dúvidas deles. De repente, um zumbido de assobio invade a sala. Os alunos se partem junto à janela de pré-moldado da sala para ver o que é. A professora diz que é o De Assis (marido da professora e capataz da fazenda) tocando jumentos pela estrada em direção ao riacho. Os alunos riem e voltam aos seus lugares. A professora pergunta:
‘Profa - Terminaram? Agora eu vou passar para a 3a série!
Aluna - De matemática?
Profa - Hum... Hum!...’

E escreve no quadro de giz:
“Exercício”

Um aluno vai ao pote para beber e a professora adverte:
“Acho que o remédio caiu dentro, o Firmino [filho da professora] disse.”

Ela está preocupada porque um agente de saúde que passou pela escola, colocou um remédio na água contra a proliferação do mosquito da dengue (aedis aegypti) muito comum na região, mas na verdade isso não impede o consumo da água.

O aluno vai até à porta derrama a água do copo que é o mesmo para todos. A professora copia no quadro de giz o exercício destinado à terceira série.
“1) Resolva as Adições
a) 425 + 163;b) 308 + 51;  c) 102 + 462;  d) 8040 + 19352.”

A professora senta-se enquanto os alunos copiam.

“Aluno da 2a série - Professora, 6 + 8 + 14, não baixa o um não, né?Só o quatro?
Aluna - Professora terminei!
Profa ao aluno de 2a série - Deixa eu ver! É... só o quatro.”

E volta a copiar, no quadro de giz, o exercício da 3a série.
“2) Calcule e Some
a)      746 + 495;b) 2658 + 552;  c) 6584 + 9236;  d) 578 + 196;  e)  1246 + 9285”

A professora senta-se, aguardando os alunos copiarem. O quadro é muito pequeno, em torno de um metro quadrado. Só dá para fazer um quesito de cada vez.
“Aluna - Terminei!”

A professora apaga o quadro de giz e continua.
“3) Arme e efetue
a)143 + 235; b)235 + 498; c)11 + 9 + 3; d)27 + 6 + 3; e)15 + 5 + 6.”

Depois de algum tempo.
“Profa - Terminou, Vanda!
Aluna - Terminei...”

A professora apaga o quadro de giz e continua.
“4) Resolva as adições
a)753 + 148; b)235 + 498; (....) g)300 + 10 + 90”

A professora senta-se à mesa enquanto uns copiam, outros fazem os cálculos e outros ao terminar vão levando o caderno para a professora corrigir ou explicar suas dúvidas (...).
“Profa - Terminaram? Agora é a Quarta série!”

Vai ao quadro de giz e copia a tarefa da quarta série.
“Aluna - Tia! Tia! Tá na hora do recreio!
Profa - É... vão lá e na volta a gente continua.”
Aproveitando o recreio, a professora vai até sua casa, em frente, dar andamento ao jantar da família de dos trabalhadores que estão fazendo a colheita do arroz na fazenda na qual seu marido é o encarregado. Após o recreio, ela reinicia a tarefa da quarta série.
“1)Efetue as adições e tire a prova.
a)874367 + 234789; b)8976453 + 4608262; c)976364 + 346823 + 268242; d)8743690 + 6123578 + 5426853.(...e, f, g, h , i, j, l, m).
Profa - É pra saltar duas linhas, viu?”

Enquanto os alunos de quarta série copiam, a professora atende as dúvidas dos alunos de 2a e 3a séries que estão fazendo a tarefa.
“Aluna - Olha aí, tia. Não sei se está certo.”

A professora olha fala com ela alguma coisa (...) e volta à mesa para consultar o caderno onde estão os resultados das questões e retorna à carteira da aluna e explica (.....) como armar a conta. E volta a copiar a tarefa da quarta série.
“2)Efetue as Adições.
a)897547+ 762463 + 323975; b)875432 + 782436 + 342642; c)89754 + 54786 + 43625.”

A professora vota a sentar-se à mesa enquanto os alunos terminam a tarefa para corrigir as respostas. De repente, ruídos de cachorros latindo e gruídosde porcos fazem os alunos correrem até à porta parar verem.
“Profa- Vambora! Vambora!...”

Os alunos se aglomeram ao redor da mesa e a professora vai corrigindo as respostas. Levanta-se da mesa e diz a retardatários:
“Profa - Terminou, Firmino?! Terminou, Joãozinho?! Vamos todos sentar que eu vou dar as respostas.”

A professora dá as respostas no quadro de giz, começando pelo 2a série, mas nem todos os alunos ainda terminaram. Uma aluna da quarta série tenta concluir o exercício, mas tem dificuldade e fica tentando fazer soma contando nos dedos.
“Profa - Pronto! Quem não terminou, termina em casa e amanhã eu corrijo quando chegar. Tem muita coisa pra mim fazer em casa. Só eu e Deus sabe!”

Quanto à atividade de português, a 1a série escreve o nome e as famílias silábicas; a 2a série faz cópia de texto; a 3a série faz frases com palavras dadas e a 4a série faz ditado e escreve bilhete.
“Profa - Vamos levantar para cantar!...”

“Bom dia, minha gente!...Trá...lá...lá...lá...lá..
Acabamos de chegar
Coração que (es) tiver triste
Trate logo de alegrar
O dia vem surgindo
Começamos a estudar"

Após o canto inicial com os alunos, a professora pega o seu caderno sobre a mesa,dirige-se ao quadro de giz, escreve, como de costume em todas as escolas, o cabeçalho, contendo o nome da escola, o nome do lugar, data (dia, mês e ano) e o nome do aluno e, em seguida a tarefa da 1a série.

Ba   Be   Bi   Bo   Bu                  Dado   Dia   Dedo   Doeu   Doi
     Ca-       -    Co    Cu                  Foi   Fio   Fiapo   Fofo   Fubá
     DaDe   Di   Do   Du                 Papo   Papai   Pai   Pia Piada   Pipoca
Fa    Fe   Fi    Fo    Fu                 Gago   Gato   Galo   Gola   Galho   Goiaba
LaLe   Li    Lo   Lu                 
 (Joana – Município de Coivaras - PI).

“Profa - Todos têm o livro de português...a 4a série, o assunto é "substantivo"; a 3a série é também "substantivo..." "Ortografia" e a 2a série é "dígrafo".

Ela vai ao quadro de giz e com o livro na mão escreve a tarefa para a 4a série.
"1) Como se classificam os substantivos?
2)   O que é substantivo composto? Dê exemplo.
3)   O que é substantivo coletivo?
4) Escreva o nome de:
a)      três pessoas de sua família.
b)      Da cidade em que você mora.
c)      Dez objetos que estão à sua volta.
5) Do exercício n. 5 do livro, retire dos substantivos:
a)      próprios
b)      comuns
c)      do gênero masculino
6) Dê um substantivo derivado para cada palavra:
a)      fruta
b)      sorvete
c)      folha
d)      ninho
e)      muro
7) Transforme as palavras em substantivo abstrato:
a)      inteligente
b)      suficiente
c)      adolescente
d)      deficiente"
(...)

“Profa - Agora, é a 3asérie...é também "substantivo" a parte de "ortografia".
1) Complete as frases usando substantivo próprio:
a)_____________ está cançado (sic!)
b)_____________parece feliz
c) Nós moramos em ______________
d) Pedro viajou para ______________
2) Dê um nome para cada substantivo:
a)      garoto
b)      homem
c)      escola
d)      cidade
3) Complete as frases, usando palavras com "Z" ou "S"
a)      a _______ da ________ estava ______ quando os ladrões chegaram;
b)      afaixineira (sic) fez toda a ________ da _________ sozinha;
c)      César e Eliane marcaram o _________ para o mês de dezembro;
d)      Sobre a ____ havia um ____ com uma ______ de rosas;
4) Complete, usando palavras derivadas:
a)      menino que tem medo ______________;
b)      aluno que presta atenção _____________;
c)      artista que tem fama ________________;
d)      mulher que tem vaidade ______________;
(...)

A professora, da janela, grita com sua neta que está brincando no lado externo da sala de aula.
“Profa - Fabíola, sai do sol!...”

E volta ao quadro de giz.
“Profa - Agora é a tarefa da 2a série.
1)Separe as sílabas das palavras e destaque os dígrafos:
Profa. - Ei!... vai brincar prá lá!...(diz ela com seus netos e continua a tarefa)
a)      assado; b) barriga; c) marreco; d) passeio; e) toalha (...)”

A professora vai até à porta da sala de aula e diz para uma neta sua que brinca na calçada de sua casa ao lado da escola:
"- Fabíola, vá buscar água pra vovó!" (a menina traz a água e ela continua a tarefa da 2a série).
3) Junte as sílabas e forme palavras terminadas com "Z"
a)      riz, ca, cha, cruz, na, fa,  xa, puz, cuz, diz per.
A professora fala com o marido que está ao lado da casa.
- Então, Luiz, tu não vai lá onde tua mãe, não?
- Não, muier!...Tu vai e qualquer coisa liga pra telepisa [posto telefônico]”

e volta a copiar a tarefa no quadro de giz.
“4) Forme uma frase negativa, usando dígrafo.
5) Escreva seis palavras que têm dígrafo;
6) Que são dígrafos?  (Profa. Conceição – Altos”

Essa prática de ministrar o mesmo assunto com níveis diferentes para as várias séries é comum nas demais disciplinas, como por exemplo, em Estudos Sociais, em uma classe multisseriada com as quatro primeiras séries, a professora diz para os alunos os assuntos do dia:
          "Hoje, nós vamos dar continuação ao assunto de Estudos Sociais.                       (...) A primeira série vai copiar a tarefa do livro sobre A Casa;a segunda série vai copiar a tarefa do quadro sobre O Bairro; a 3asérie  vai responder a tarefa sobre A Zona Rural e a 4a série é sobre Os Rios".

Nas atividades de sala de aula, as tarefas dos alunos são sempre individuais. Os exercícios consistem em fazer os alunos procurarem respostas nos textos dos assuntos estudados nos livros e copiá-las. Geralmente, não há qualquer discussão ou reflexão dos alunos para estabelecer relações, comparações, diferenciações, construções de idéias próprias, visando aplicação em situações diferentes e concretas da vida.

Muitos alunos chegam à 2a , 3a e 4a  séries sem saber ler e escrever suficientemente. Isso tem origem em vários fatores, mais pedagógicos que sociais e econômicos. Considerando-se os fatores pedagógicos, é possível que a inexistência da pré-escola para atender a maior parte dessas crianças rurais, faz com que elas entrem direto nos processos de leitura, escrita e operações numéricas sem desenvolver habilidades básicas (motora, cognitiva, afetiva) que as preparem para a formação do raciocínio lógico-matemático. Em decorrência disto, há baixos índices de aprendizagem e altos índices de reprovação e evasão. Há alunos que embora aprovados não dominam os saberes necessários para a série seguinte. Isso ocorre porque as notas de ciências, geografia, história ajudam elevar a média geral, mascarando as deficiências de português e matemática. Portanto, há uma reprovação que aprova. Um processo silencioso de esconder a dura realidade negativa da aprendizagem escolar rural.

Nesse tipo de escola, há dois tipos de repetentes. O primeiro, o aluno que não alcançou a média final. O segundo, o aluno que sendo aprovado, continua repetindo o ano uma vez que a escola rural, via de regra, não oferece ensino fundamental além da 4a série. Em ambos os casos, a reprovação ou a repetição de série são encaradas como uma oportunidade de aprender mais. Os alunos que concluem a 4a série do ensino fundamental e continuam a repetir a mesma série porque não há na escola série além dessa geralmente se transformam em professor auxiliar, possivelmente, futuro substituto da professora. A repetição constante da última série (4a série) pelo aluno constitui, na prática, um processo informal de formação de futuros docentes leigos.

São raras a exploração de atividades coletivas que favoreçam a troca de experiências entre os alunos. A dinâmica de classe é determinada pelo controle de execução de tarefas, do tempo despendido com cada atividade da disciplina dos alunos e dos aspectos burocrático-administrativos como os registros no diário de classe e correção de tarefas.  

A média de tempo de aula na escola rural da área da pesquisa fica entre 2:30 e 3:30 horas. O excesso de tarefas: exercícios, cópia, ditado, leitura de texto, correção de exercícios parece ter duas implicações. A primeira refere-se ao comportamento dos alunos e a segunda, parece manter a representação que os alunos têm do professor como aquele que sabe. Os exercícios ocupam todo o tempo que o professor poderia estar discutindo, explicando, orientando e dirigindo a aprendizagem dos alunos. Tal prática pode constituir-se numa espécie de armadura pedagógica para esconder sua insegurança nos conteúdos que ainda não domina. Por outro lado, é preciso manter os alunos ocupados como mecanismo para controlar sua conduta em sala de aula. Via de regra, há, paralelamente ao processo didático-pedagógico, uma troca substancial de informações entreos alunos que em nenhum momento é aproveitado pelo professor que interpreta isso como indisciplina. É uma temática surda, oculta, de produção de saberes da experiência deles como jogo, lazer, caçada,viagens, festas, notícias locais, TV e novelas, dentre outras, em confronto com os conteúdos propostos pelo currículo. 

A metodologia utilizada em sala de aula não permite muito espaço à participação dos alunos que, geralmente, só se manifestam quando são perguntados. A prática docente apresenta-se repetitiva, à base de exercícios copiados pelos alunos dos livros ou do quadro de giz, sem nenhuma aplicação concreta que favoreça a descoberta, por eles mesmos, para uma melhor compreensão de sua realidade. Os conteúdos das matérias de uma mesma série ou de séries diferentes são ministrados isoladamente.

Os exercícios que deveriam estimular a reflexão dos alunos são atividades mecânicas, nas quais os alunos vão apenas transcrever respostas encontradas nos textos dos livros. O método de copiar exercícios dos livros em lugar de explicar e trabalhar com eles a compreensão dos conteúdos a serem ensinados talvez possa ser uma estratégia do professor para evitar se expor diante dos alunos com apresentação de temas que não os domina.  Os exercícios de cada matéria, no entanto, vêm com as respostas no livro do professor, aspecto que garante a segurança na correção das respostas dadas pelos alunos e a imagem do professor diante deles e da comunidade. Certas respostas de exercícios ele não sabe explicar o porquê, mas sabe as respostas, decoradas dos gabaritos do livro do professor.    

É provável, que a predominância de exercícios em classe se dê por vários fatores, dentre eles o pouco preparo do professor que não consegue ocupar o tempo com explicação dos conteúdos e a resistência das famílias em não aceitar deveres de casa não só porque não há em grande parte das famílias quem saiba ensinar, mas também porque atrapalha as tarefas domésticas, destinadas às crianças, no período que não estão na escola. Com os exercícios fica mais fácil cumprir o horário da aula. Dois professores falam a este respeito o seguinte:

                     "Não adianta passar tarefa para casa porque volta do mesmo jeito. Os pais não sabem ensinar e ainda reclamam que o aluno vai pra escola é pra aprender lá. Os pais não gosta que a gente passe tarefa pra casa porque quando o aluno chega em casa tem trabalho pra fazer e a tarefa atrapalha" (Profa. Regina, União).

                     "A gente passa a tarefa pra resolver em casa, aí em casa o pai se nega... não... não vou fazer isso aí não porque quem tem direito de ensinar é o professor... ele é que tá ganhando dinheiro. E hoje tá uma confusão muito grande no município porque muito professor leigo que não é estabilizado foram pra fora, aí em muitos lugar foi professor daqui (da cidade) formado no pedagógico e em muitos lugar os pai não quer os professor que tem lá. (dizem) Ah! O formado vai fazer meu filho aprender, falar direito". (Prof. Justino, município de Altos).

A subutilização do tempo de aula com constantes tarefas revela a insegurança do professor nos conteúdos que ele deve ensinar na escola. Os conteúdos, principalmente de 3a e 4a séries, são estudados pelos alunos em casa ou na sala de aula. Há grande carga de exercícios e na correção o professor explica o assunto somente com relação às dúvidas dos alunos. Essa metodologia não favorece a construção de um conceito mais claro, mais científico por parte eles, visando superar um conceito espontâneo ou do senso comum. O processo de aprendizagem consiste em substituir uma resposta considerada errada por outra considerada certa que para o professor é sempre aquela que vem no seu livro respondido. Isso fecha todas as possibilidades dos alunos construírem e expressarem respostas também corretas, incorporando outros elementos de sua experiência.



Bibliografia


CHAPOULIE, Jean Michel.  La compétence pédagogique des professeur comme enjeu de conflits. IN Actes de la recherche en sciences sociales. Paris, Ed. Minuit, No. 30, Nov, 1979.

RODRIGUES, J. R. Torres. Magistério leigo rural do Piauí: concepções e práticas.Dissertação de Mestrado, PUC/SP, São Paulo, 268p., 1986.

RODRIGUESJ. R. Tôrres. Educação além do asfalto. (um estudo sobre as concepções e práticas do professor leigo rural) Teresina, Edufpi,    203p.,1999.




4 Tomar a letra - significa tomar a lição.
5 Ensino Simultâneo. Método de ensino pelo qual o professor ministra aulas a várias séries ao mesmo tempo e na mesma sala de aula. A defesa deste método consiste em argumentar que ele mantém os alunos ocupados, favorece o bom emprego do tempo, permite atender grande número de alunos e cada aproveita com as explicações do professor e com as respostas dos colegas.
[1]Jean-Michel Chapoulie. La Compétence Pédagogique des Professeurs Comme Enjeu de Conflits. P. 66. “L’organisation des concurs de recrutement définit explicitement la compétence  profissionnelle des professeur comme le produit composé d’une compétence culturelle générale, de la même nature que celle que garantit la possession des diplômes de licence, et dúne compétence spécifique aux professeurs que l’administration qualifie de ‘pédagogique’ou, parfois, de ‘pratique’.

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