domingo, 22 de fevereiro de 2015

A mulher e a Educação no Campo

A MULHER RURAL PROFESSORA

A presença majoritária da mulher nas quatro primeiras séries do 1o grau é uma tendência nacional.  A predominância registrada na área de pesquisa confirma-se também em nível estadual. A compreensão desse fenômeno se torna cada vez mais possível, à medida que as análises partem, antes de tudo, da história de sua condição de mulher rural onde a dinâmica familiar se orienta, ainda, no interior do Piauí, por fortes traços do sistema patriarcal.

Rodrigues, (1985), com relação a presença feminina no ensino, aponta o Relatório da Comissão Nomeada pelo Governador do Piauí em 1922, para estudar medidas práticas para o Ensino Primário e Normal, cujo conteúdo está contido em "A Instrução Pública no Piauí - 1922" onde é enfatizado o "despreparo do professor", a "ausência de espírito profissional e o abandono das escolas ou por preguiça ou para se entregarem aos misteres do lar" (P. 51). Este mesmo relatório recomenda a contratação de mulheres solteiras justificando que "devendo ser o magistério um sacerdócio é preciso que a ele se dediquem por completo e isto não poderá fazer aquela que tem de dividir os carinhos entre os próprio filhos e os estranhos, cuja guarda lhes é confiada". Ainda este Relatório, citando o Regulamento Geral da Instrução Pública do Piauí procura assegurar a exclusividade feminina no ensino primário tendo em vista a influência da mulher neste nível de ensino.

A professora leiga rural piauiense faz parte dessa cultura familiar, regida por valores de obediência, de submissão e destinada ao papel de execução, principalmente de atividades domésticas, e quase nunca de participação nas decisões, sejam familiares ou profissionais. A mulher rural professora é submetida a um processo de exploração no ambiente familiar, onde, além de ser responsável pelas tarefas domésticas de  cuidar dos filhos, da casa, comida, roupa, animais, ainda desempenha funções auxiliares no serviço de roça. Na escola, a ela é atribuída  uma carga de trabalho que inclui além das atividades de professora as de faxineira, merendeira, diretora e ainda é convocada para trabalhos de voluntariado na comunidade.  O ensino é, assim, apenas mais uma tarefa a cumprir.

As tarefas da zona rural exigem muito esforço físico.  O magistério é uma atividade considerada mais leve. Sendo as tarefas mais “leves” executadas por mulheres e crianças, à mulher é sempre destinada a tarefa de ensinar. Isso, contribui para reforçar a presença da figura feminina no magistério rural. A figura do homem como responsável pelo sustento da família, ainda é um traço cultural marcante na zona rural, e isso tem servido não só para justificar a presença da mulher no ensino das séries iniciais do ensino fundamental, já que esse trabalho  é  de quase sacerdócio ou de cunho maternal, caracterizado pela não geração de uma renda  socialmente significativa. O depoimento de um professor é representativo a esse respeito:

                     "Elas acham que é uma perda eu ganhar só o salário mínimo pra trabalhar manhã e a tarde...se eu tivesse como pedreiro... é 100 por semana, enquanto eu passo um mês pra ganhar isso. Elas admiram em mim  essa questão de eu aceitar ganhar tão pouco quando eu deveria ganhar o dobro ou o triplo, trabalhando na minha antiga profissão de pedreiro". (Prof. Marcos,  município de  Lagoa do Piauí).

Isso reflete, também, na sexualização do trabalho e na divisão de poder, um preconceito segundo o que o homem deve exercer postos de mando e a mulher, posições auxiliares, daí decorrendo concepções culturais de papéis a serem desempenhados, como a questão da autoridade. Isto determina um tipo de educação diferenciada,  na qual a mulher é iniciada nos rituais de “prendas domésticas” que, nesta cultura, lhe fará um verdadeira  dona-de-casa. Em outro depoimento, o mesmo professor leigo anterior afirma: 

                     "Os pais, se fosse por eles, todo professor seria homem, na zona rural, porque eles acham que o homem tem mais condição de desenvolver o assunto e manter a disciplina. Eles têm essa visão. Inclusive, aqui mesmo, eu já vi vários pai querendo transferir os filhos de outra escola, distante seis km pra cá, dizendo que não se dando bem com a professora porque ela não mantém a disciplina".

Na prática, a mulher rural professora contribui tanto quanto o homem para o orçamento familiar, especialmente nos períodos de seca quando o seu salário é a base do sustento da família. É importante observar um processo de seletividade familiar no encaminhamento dos filhos para a escola. As famílias têm geralmente muitos filhos. Os do sexo masculino acompanham o pai desde 5 ou 6 anos, cumprindo pequenas tarefas. As filhas mais velhas ajudam a mãe nos afazeres domésticos e cuidam dos irmãos mais novos, mas todos dividem seu tempo entre escola e trabalho.  Os meninos, em geral,  permanecem na escola o suficiente para aprender a ler, escrever e tirar contas, uma vez que o trabalho de roça e sua sobrevivência não dependem muito desse nível da atividade escolar. As meninas, uma parte fica para ajudar nos trabalhos domésticos, outra parte é enviada para a casa de parentes ou amigos, na cidade, onde, como domésticas, aliviam os gastos familiares, podem estudar e alcançar melhor escolaridade e, ao retornar às suas localidades, podem possivelmente, se tornar professoras.

São estas jovens que formam a maioria da clientela que lota as escolas públicas noturnas das cidades. Há também pais que alugam ou compram casas na cidade onde os filhos, e as mulheres vão estudar.  Os homens, em sua maioria, ficam para reproduzir a força de trabalho.

A busca de maior escolaridade, na cidade, revela a crença das famílias na educação como fator de mudança das condições de vida e a perspectiva de um outro trabalho que não seja a roça ou o magistério. A participação da mulher rural professora nos processos decisórios é muito reduzida, quer na família, no trabalho ou na comunidade.  Dos doze professores participantes desta pesquisa, apenas quatro são membros de associações ou movimentos comunitários ou religiosos. Não obstante o pequeno número, poderia haver um grau significativo de participação se os postos ocupados possibilitassem maior poder de decisão. Mas eles ocupam também, como na família e no magistério, tarefas de execução.  Embora as mulheres, em geral, tenham mais escolaridade que os homens, elas sempre ocupam  funções de execução.

A sexualização do trabalho se reproduz na divisão do poder com reflexo do mesmo valor cultural em que o homem exerce, quase sempre, funções de mando.  Algumas mulheres rurais professoras, quando participam dessas associações, sempre são indicadas para a função de secretária, principalmente porque o exercício dessa função se impõe pela necessidade de saber escrever para elaborar as atas das reuniões e a professora, na maioria dos casos, é a única que ainda pode desempenhar essa função. Nas atividades  comunitárias,  sua participação se  evidencia em novenas, festas populares, familiares, religiosas e em campanhas de saúde, nas quais a organização e execução são de sua responsabilidade, mesmo porque grande parte dessas atividades é desenvolvida no espaço escolar.       

A carga de trabalho atribuída à mulher rural professora, acrescida das exigências do controle burocrático da escola e a execução de um ensino através da aplicação de técnica e conteúdos que ela não domina, revelam o grau de exploração a que ela é submetida na família, no trabalho e na comunidade.  Esse processo cultural, resistente às mudanças, contribui para o retardamento da profissionalização docente na zona rural.


A partir da compreensão deste contexto histórico onde vive e trabalha o professor leigo tenta-se, no próximo capítulo, desenvolver uma análise do processo de construção de saberes pedagógicos em sala de aula, os possíveis significados e sua influência no processo de ensino e aprendizagem.

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